sexta-feira, 26 de março de 2010

Causa Mortis









Causa mortis


Morreu. Isto era um fato. Faltava definir-lhe a causa mortis. Não que alguém fosse ler ou se importar com esta definição, mas era necessário posto que em sua certidão de óbito haveria de constar uma causa, como se a morte, legítima dona da vida, que dela se apropria a seu bel prazer, necessitasse mesmo de algum motivo para justificar seus atos. Os diagnósticos foram muitos, tanto de curiosos próximos ou nem tanto, como do médico que examinava displicente o corpo gélido e pálido. Alguns disseram de um profundo amor outonal, que impregnou-se-lhe no corpo, alma e coração, não lhe dando paz nem de dia nem de noite, nem em sonhos nem em vigília, tornando as lembranças tão ávidas e vivas quanto a saudade voraz e faminta de seu amor, ambas igualmente suicidas, que se alimentavam de todas suas forças vitais sem compreender que isso significava também o seu fim. Alguém cochichou que amor é veneno sutil e fatal, quando ingerido pela alma que faz dele a causa maior e a única razão do existir. Amor nunca mata, que isso é coisa de loucos e poetas que inventam histórias de se morrer de amor, a iludir os tolos, disseram outros, e entre falas e murmúrios abriram-lhe o corpo à procura dos causadores daquela que se impunha soberana a quaisquer causas. Percorreram todas as suas cavidades e órgãos, que inertes não ofereciam nenhuma resistência à procura das possíveis causas, indiferentes a toda e qualquer mão. Examinaram-lhe com a curiosidade incrédula e mórbida, típica dos seres humanos, quando não entendem os motivos das coisas comuns que acontecem às pessoas comuns. Veio por fim o veredicto. Morrera de indigestão. A indigestão que se embota nas veias, empelotando todas as palavras que deveriam ser ditas e que nunca foram pronunciadas; a indigestão que petrifica os sentimentos e os transforma lentamente em pedra, e que entope as artérias por onde o sonho deveria fluir livremente. Morreu de uma indigestão tão séria, daquela que faz da esperança bolhas de vazio a sufocar os pulmões impedindo a respiração da vida, daquela causada pela extrema lucidez que permite ver além das míseras emoções camufladas, a verdadeira realidade da ausência de sentimentos verdadeiros, que viu nos olhos das almas daqueles que lhe pousaram o olhar. Morreu de indigestão profunda e simples, do simples fato de existir a vida e de se ter que diariamente beber de sua fonte e de se ingerir pacientemente sua cruel e inerente solidão. Morreu de indigestão. Indigestão de vida


(Publicado pela CBJE - Março/2010 - Contos de Outono)

quarta-feira, 24 de março de 2010

Favela

Favela

Casas e casas grudadas
Dependuradas
Asas fechadas
Bocas abertas
Como aves num poleiro

Casas e casas apertadas
Caminhos tortos
Desajeitados
Vielas serpenteadas
Subidas a um topo sem cruzeiro

Casas e casas apinhocadas
Incrustadas em pedra
Monocromáticas por inteiro
Vistas do céu se assemelham
A um imenso e triste formigueiro

segunda-feira, 22 de março de 2010

Cotidiano


Cotidiano


Vivo no presente
O tempo me projeta para o futuro
Mas respiro presa ao passado
Renovo as máscaras que uso
Mas minha essência permanece inalterada
A rotina acelerada me atira adiante
Mas continuo atrelada ao ontem
Minha bagagem aumenta
Na exata proporção em que me esvazio
O ritmo da vida se acelera
E cada vez mais afasto-me de mim mesma
Tudo isso porque o tempo do mundo
Não é o tempo do meu coração!

Paladino


Paladino

Cavaleiro solitário e errante
Teu corcel já nao cavalga
Através de campinas distantes
Na direção do topo do mundo
Em busca do sonho encantado
Nos campos do mundo real
Hoje já não cavalgas
És homem alado sem céu
Sepultado vivo no mausoléu
De uma existência virtual
Mas continuas solitário
Na busca de teu mágico graal

O tempo e o amor


O tempo e o amor

Existe um amor, entre todos os amores,
Que não esmaece e nem desaparece
Nas brumas e na passagem do tempo
Existe um amor que se eterniza
Em lembranças sempre presentes
Em emoções sempre latentes
E que não se desfaz entre os dentes
Da louca e faminta engrenagem da vida
Um amor que se agiganta e se agita
Às vezes adormece e outras vezes grita
Que seduz e flerta com a insanidade
Mas que é real e dá sentido a realidade
E mostra a luz e o caminho da eternidade

Amores


Amores

Amamos com a mente, o corpo e o coração
Amamos pequenos e grandes amores
Aqueles que amam apenas com a mente
Ou simplesmente com o corpo
Constantemente mudam de amores
Porque a mente se satisfaz
E o corpo rapidamente se sacia
São os pequenos amores...
Mas o coração não se cansa nunca
A alma é perpétua e infinita
E esses amarão eternamente
São os grandes amores...

Jeito


Jeito

Ama-me assim, do teu jeito,
Que todo jeito é jeito,
E não há jeito certo de amor
Ama-me assim do teu jeito,
Que teu é o jeito perfeito
Que quer o meu coração
Ama-me assim, do teu jeito
Mas também permita que eu
Do meu jeito, possa às vezes,
Passear por todo teu corpo,
Caminhar pela tua alma,
Adentrar em teu coração
Suave e sensualmente,
E com amor e muito jeito,
Penetrar em tua solidão.

Macaco não tem insônia

Macaco não tem insônia

Lá pelas tantas, depois de desligar o PC, alimentar os gatos, conferir portas, banhar-se, escovar os dentes, apagar luzes e realizar todo o ritual que antecede o dormir, deitou-se.
Seu corpo cansado esticou-se e enrolou-se na cama por diversas vezes, virou-se, revirou-se e nada de conciliar o sono. Relaxou, meditou, até rezou e nada! O sono não lhe dava o ar da graça. Resolveu contar carneirinhos e assim feito criança, quem sabe, dormiria. Imaginou-os todos branquinhos, peludos, alegres, pulando um após o outro, vindos de um lado misterioso de sua mente, e saltando para o outro lado, não menos desconhecido. E contava-os... Às vezes perdia a conta e começava tudo outra vez... Um, dois, três, e eis que de repente um chimpanzé saltou por entre os alvos carneirinhos! Levou um susto! Não acreditava no que acabara de ver, se é que se podia chamar de ver, o que sua mente criava com os olhos fechados, bem dentro de sua cabeça. Um chimpanzé! Atrevido! Como foi possível semelhante fato? Afinal ele é quem criava e contava os carneirinhos... Como pôde um chimpanzé, aparecer de forma tão inusitada por entre sua criação?
Abriu os olhos, pestanejou, será que dormira por alguns instantes e sonhara? Pensou... Cismou...Resolveu fechar os olhos, voltar a contar carneiros e tentar adormecer. Dito e feito. Um, dois, três... Branquinhos... Dezenove... Alegres... Trinta e cinco... De novo! O chimpanzé saltando junto aos carneiros! Não é possível! Inacreditável! Mas desta vez o chimpanzé parou, e bem do centro de sua própria cabeça olhou-o fixamente como a indagar, com lampejos de raiva e indignação, com que direito ele interrompia seu salto. Coração disparou. Pensou estar enlouquecendo! Não imaginou chimpanzés entre cordeiros! Estaria tendo alucinações? Não tinha mais controle sobre o que pensava! E o olhar... O olhar do chimpanzé! Olhar furioso de quem é interrompido durante um sério e importante trabalho. Olhar inquisidor daquele que coberto de certeza, posse e razão, questiona o intruso deixando-lhe a sensação de invasor culpado e desprotegido. Não sabia o que fazer. Abriu os olhos. Sentou-se na cama, coçou a barba e a cabeça, Limpou o suor que lhe escorria da testa. Deitou-se novamente, respirou fundo, sonhara pensou novamente, certamente sonhara o mesmo sonho. Muitos disseram já ter vivido semelhante experiência. Não estava enlouquecendo, decerto que não! Mas não entendia como um chimpanzé intrometido infiltrava-se entre seus carneiros sem a sua permissão. Nem gostava de macacos!
Resolveu tentar dormir novamente e teimoso que era, decidiu contar de novo seus carneiros, e desta vez nenhum chimpanzé iria estragar-lhe a contagem, controlaria sua mente e sua imaginação... Um, dois, três... Suaves e mansos... Vinte e quatro... Despreocupados feito crianças... Quarenta e sete... Mecânicos feito maquinário de relógio antigo... Não conseguia dormir... Perdeu a conta... Começou tudo novamente... Não conseguia dormir... Um, dois, três... Descreviam um arco perfeito ao pular de um lado para o outro de sua mente... Vinte e dois... Todos iguais, perfeitos, assim eram os seus carneirinhos... Cinquenta e dois... O chimpanzé! Ele de novo! Não acreditava! Coração aos pulos! O chimpanzé parou... O mesmo olhar furioso... O chimpanzé, olhar fulminante e fixo, lentamente aproximou-se e num lapso de segundo desfechou-lhe um grande soco no queixo... Nocaute! Adormeceu profundamente...

Expectativa

Expectativa

E...
Se o prazer nasce no cérebro,
Toca meu corpo com carinho,
Com especial e sensual sensibilidade,
Para que, inebriado, meu cérebro possa
Devolver-te em gozo e prazer
Todo o potencial de tua meiguice...

E...
Se o querer é pela mente assimilado,
Toca meu coração com nuances
De cor e emoção, com afeto e carinho,
Para que minha razão te perceba
E, emocionada, minha mente possa,
Quedar-se aos teus pés com tanta paixão,
E querer-te mais que a si mesma

E...
Se o amor é pela alma eternizado,
Conduz então, meu ser com plenitude,
Encaminhe-me para o sol, faz-me luz,
Com amor e paixão, com querer e vontade,
Para que meu espírito te prove,
Te conheça, te deseje e te queira amar,
Por toda a infinita eternidade...

Obsessão


Obsessão

Deixa eu ser tua Dulcinéia,
Amar-te em loucos anseios,
Ou ser tua branca Isolda,
A navegar em teus cabelos,
Deixa eu ser tua gueixa,
Fazer amor ao sol nascente,
E dançar por entre teus pelos.
Deixa eu ser tua Julieta,
Tua Inês, tua Heloísa,
Ser tua amante ou tua poetisa,
E se nada disto te encanta,
Deixa ao menos, por instantes,
Aos olhos do povo que ri,
Deixa que eu seja apenas,
Simplesmente tua Geni...

O nó e o laço


O nó e o laço

Laços unem...
Nós prendem e amarram...
É o nó e não o laço,
Que amarra a pedra
Em teu pescoço

É o nó e não o laço
Que te carrega 

Para o fundo
Do lodo e do poço...
(Foto de George Portz)

Solidão



Solidão

A solidão sempre fara de mim,
Sem remorso e sem punição,
Sua melhor e mais fiel serva,
Pois é dela o sopro de minh'alma
E o pulsar de meu coração...



Memória


Memória

Na memória
O tempo para, congela
E se torna eterno...
Na memória
A mente eterniza o momento,
E um instante é infinito...
A mágica do encontro é possível
A distância desaparece
E o estar junto é tangível...
Na memória Intenções são imortais
Atitudes são perpétuas
E o sonho é a luz do pensamento...

Mergulho

Flutuas assim, leve e livre,
Bailando nas águas do viver
Mergulhando no rio da vida
E eu, sentada em suas margens,
Limito-me a observar o teu bailado
A traiçoeira, ágil e forte correnteza
Em que, certamente, eu me afogaria
Não te impõe nenhum empecilho,
Pois és muito, muito, mais do que ela
Tens no amor, a fonte de tua força
Deslizas soberana, num vai e vem confiante
Como se foras uma canoa a dormir
No braços de um calmo e terno lago,
Suavemente banhado pela luz do luar
Às vezes, coloco lentamente meus pés
Nas águas desse rio e seu movimento
Me entontece e sinto a corrente viva
A te carregar para os mares do sonho
Não sou peixe... Nem sei nadar...
Não bebo da tua fonte, para poder voar...
Sentada nas bordas do rio de tua vida
Meus olhos, apenas, limitam-se a te olhar
E ajudam a aumentar o volume
Das águas que o rio carrega
Para dentro do amplo ventre do mar...

Existência

Existência

E não existe um só dia
Em que tua boca não me sorria
Na tela estática de minha memória
E não existe um só dia
Que tua ausência não provoque
Uma lágrima a me regar o olhar
Como a nutri-lo para ver a vida
Nem existe uma noite sequer
Em que eu não te deseje boa noite
Na cama vazia de meus pensamentos
E não existe nenhum momento
Em que teu ser não influencie
Meu falar ou o meu silêncio
Nem existem frases, versos e escritos
Que tua existência não inspire
Aquilo que será e o que já foi escrito
Vivo lembranças e retalho o tempo
Penso na vida, inexorável,
Questiono a lua, inexplicável,
Vislumbro a morte, inevitável,
Contemplo o sol vivo e distante,
Despretensioso aquecendo e dando vida, 
Doando luz à relva verde e esfuziante,
E a mim, relva seca, insignificante...

Escrever

Escrever 
Escrever é apaixonante e profundamente desafiador.
As palavras possuem significados próprios e definidos, mas nem por isso teremos a garantia de que seremos completamente entendidos por quem nos lê. É preciso ser absolutamente fiel ao que se quer transmitir e é fundamental também ser o mais claro possível naquilo que se escreve, mas isso também nem sempre é suficiente para transmitir ao outro aquilo que pensamos ou queremos.
Tentamos transmitir uma coisa e o outro, ao ler entende outra coisa... E é neste ponto que reside a magia do escrever, a riqueza das múltiplas interpretações que uma simples frase pode ter ao ser lida por pessoas diferentes... Isto porque somos únicos... Só nós sabemos de nossas experiências, de nossas bagagens, de nossas emoções e sentimentos.
O que significará um "beijo doce como mel" para aquele que nunca provou o fruto das abelhas, ou o que é pior, para aquele que detesta doces?
Qual o sentido de dizer que "se morre de amor" para quem nunca vivenciou um sentimento maior do que o corpo, a mente e a alma? Maior do que a sensação daquilo que chamamos vida?
Muitos nos lerão e entederão mas seremos melhor assimilados por aqueles que tiverem dentro si uma bagagem, vivências e anseios semelhantes aos nossos, pois entender, compreender e assimilar é tarefa não só da mente racional que lê, codifica e traduz mas também do componente imaterial e emocional que vive em nós. É essa natureza imaterial e misteriosa que nos habita que vai na verdade, interiorizar o que a mente racional apreendeu...